Wilco, uma catarse e um verão
Um show recente que ainda ecoa e que me levou a treze anos antes para consertar memórias
Assim que o Wilco saiu do palco no último C6 Fest o Matias falou “catarse, né?”. Eu concordei e pensei nos gregos, khátarsis, purificação, o auge da tragédia. A sensação de ter sido purificado era real porque ao longo de 1h24 eu pude me acertar com um verão de treze anos atrás.
O meu primeiro show do Wilco foi em 2012, no Primavera Sound, em Barcelona. Junto com The Cure, Afghan Whigs, Spiritualized [tocando o Ladies & Gentlemen na íntegra] e Jeff Mangum [num teatro lindo] a banda fechava a minha lista de cinco motivos para viajar a outro país com uma pá de amigos. Durante 10 dias o apartamento que alugamos virou uma porta giratória de mais amigos vindo e voltando de outros shows e festivais no verão europeu, foi fraterno e divertido.
Vários de nós estávamos colados na grade quando o Wilco começou a tocar, por volta das 23h, sexta-feira, 31 de maio. Não foi um show excelente –lugar grande, aberto– mas foi bonito demais, começou com Poor Places, era a turnê do The Whole Love, com uma dobradinha de Art of Almost e I Might que nunca esqueci, outra de Spiders e Impossible Germany que nos pegou em cheio.
Empolgado, durante a viagem mesmo eu comecei a esboçar um plano que em resumo era mudar para a Espanha em até dois anos e arriscar uma temporada, não havia, a priori, nada que me impedisse. Seria um twist na vida, eu já tinha dado alguns.
No dia seguinte vimos o Afghan Whigs, que voltava aos palcos depois de dez anos, uma banda que eu achei que jamais veria ao vivo e estava ali inteiraça, pulsando, na companhia justo do Salém, o amigo por meio de quem eu havia conhecido o grupo –de um jeito torto, porque eu parti do Twilight Singers para encontrar o Afghan. Na despedida Greg Dulli desejou “have a great summer, guys”. E foi mesmo um verão incrível.
Então eu voltei e fiz escolhas que me forçaram a abandonar os planos recentes nos quais eu já vislumbrava o meu futuro. Elas me trouxeram mil outras responsabilidades e uma realidade onde aquela temporada inspirada por shows à beira do Mediterrâneo não cabia. A frase de Dulli ecoou por anos como se eu tivesse sido puxado à força de um verão que em alguma outra dimensão nunca acabou; o show do Wilco também foi arrastado para esse vão de ressentimento.
Em outubro de 2015 a banda de Chicago que passei a amar um tanto tardiamente, ali perto do A Ghost is Born, voltou ao Brasil. A vida tinha se assentado mas não de todo, alguns processos ainda se arrastavam lentos e pesados e outras mudanças se avizinhavam, então não era bem um período tranquilo e o gosto meio azedo de 2012 continuava na boca.
Foi um bom show, longo, com quase trinta músicas, era turnê do Star Wars. Teve um miolo do show com Via Chicago, Impossible Germany, Hummingbird e Handshake Drugs que pancada!, mas não o suficiente para elevar o espírito além da conta. Acabei não conseguindo ir ao show do Auditório Ibirapuera no dia seguinte, pena.
Então veio 2025. A vida deu tantas cambalhotas nesse tempo que aquele azedo de treze anos virou fichinha, embora nunca tenha sumido do horizonte. Ezra Pound tinha razão, ‘o que amas permanece’ e eu estava de novo diante de uma das bandas que mais amo na vida, que foi oásis e bálsamo em muitos períodos bem ruins, permanecendo também.
Tinha expectativas de um bom show e elas foram superadas em muito. O lugar menor, os amigos, um setlist dressed to kill, a alegria deles de voltar ao Brasil, estar perto do palco, ficar estatelado com a sequência de Handshake Drugs, At Least That’s What You Said, I Am Trying to Brake Your Heart, If I Ever Was a Child, Pot Kettle Black e Hummingbird, um solo de quase sete minutos de Neils Cline em Impossible Germany, precedida de Either Way, isso tudo foi construindo um clímax de brutal euforia, comoção, muitas lágrimas —de todos ao meu redor.
Entre I Am The Man Who Loves You e Spiders um filme de 2012 passou por mim e eu ri na cara do passado, o travo daquele verão se esvaiu por completo enquanto junto com todo mundo cantavámos a guitarra base da última canção, cheio de um profundo entusiasmo –os gregos, sempre eles, enthousiasmós, “ter Deus em si”. As escolhas que me tiraram daquele futuro possível se tornaram, no fim das contas, motivos pelos quais estou vivo, tutto passa.
Quando Jeff Tweedy cantou “remember to remember me/ stand still in your past/ floating fast like a hummingbird” foi como uma espécie de tetris sentimental, pecinhas soltas e avariadas que estavam vagando por mais de uma década encontraram um encaixe, ganharam um novo peso, que era nada diante daquela tonelada de amor e música. Foi mesmo uma catarse.
Ps.: e como se não bastasse isso ainda tive o privilégio de ver o Air tocando o Moon Safari na íntegra no dia anterior na companhia de Pat Sansone e John Stirratt, eu nem acreditava, e devo a isso a Jheysa, minha amiga querida, amiga da banda.
Ps.2: e aqui está a playlist do show