Oi, tudo bem?
Talvez você seja como eu, que às vezes cozinha para amigos, parentes, e tem mais prazer em servir do que comer. Ter me tornado pai só reforçou esse sentimento em mim. Cada um dos dois filhos, à sua maneira, me levou a uma jornada prazerosa nesse sentido. Conto um pouco disso abaixo.
Até a próxima semana!
Do latim alere
Um clichê a que recorro com frequência quando sou convidado a dar palestras ou participar de mesas e painéis é o de lembrar à plateia que a palavra restaurante vem de restaurar, recuperar, consertar ou ainda, o meu sentido predileto, “restituir o esplendor”. É isso que a comida nos faz e nos traz. Sozinho eu tenho lá minhas dúvidas, mas com fome eu tenho certeza de que é impossível ser feliz.
É um prazer dos mais preciosos, para quem serve, perceber o contentamento chegando às expressões de um amigo ou cliente depois de duas ou três garfadas, não precisa mais do que isso. A fome altera nossos sentidos, nosso humor, pode nos tornar impacientes, raivosos. Eu cansei de ver pessoas assim, nesses anos envolvido com restaurantes: clientes à beira de um ataque de nervos, pálidos, claramente famélicos se tornarem outras pessoas, afáveis, bem-humoradas e gentis pouco depois das primeiras colheradas.
Os olhos fechados, as mãos segurando os talheres e dando soquinhos na mesa, expressando “hummmmmm” ou “nooossa, era disso que eu precisava”. A gente pode não ficar rico com esse negócio e provavelmente não vai mesmo, mas tem dessas cenas que volta e meia compensam a trabalheira toda. À mesa podem surgir algumas das expressões físicas de alegria mais espontâneas e divertidas, pergunte a qualquer garçom, ele vai ter histórias.
Uma cena cuja lembrança frequente me ajudou muito a manter o cerne durante a pandemia, quando o meu restaurante passou a servir apenas por delivery ou retirada, foi a de um médico que ligou pouco antes de chegar ao local e devorou tudo ainda dentro do carro, vindo de uma jornada de quase 20 horas de trabalho, no auge da Covid-19. Mais tarde, quando a pandemia arrefeceu, ouvi de clientes com comorbidades ou por precaução, saíam uma, no máximo duas vezes por semana, e que alguma delas incluía a retirada de comida no restaurante, como um dos poucos contentamentos daquele tempo infernal.
Como filho de restauradores, até pelo menos os 14 anos, a maioria das minhas refeições aconteceram em restaurantes da minha família ou, mesmo quando em casa, recebíamos marmitas de lá. O sentimento todo de negação que me ocorreu quando deixei a casa dos meus pais — e o restaurante da vez, porque muito da nossa vida se passava nele — me afastou da cozinha até o começo da juventude. Por muito tempo eu só soube fazer macarrão e hambúrguer.
Mudar para São Paulo, em 2008, e redescobrir a comida — porque essa cidade é horrível, mas sabe te ganhar pelo estômago — me ajudou nesse movimento de maior interesse pelo fogão. Amigos e amores anteriores que já cozinhavam foram um estímulo muito importante nessa jornada. O processo de repetição aos poucos ganhou corpo, passei a ler mais a respeito de ingredientes, preparos, em blogs e livros, animado com acesso mais amplo do que havia no interior do Nordeste, onde meu paladar havia se formado.
Em 2013 meu primeiro filho nasceu e isso mudou muita coisa — a relação com a comida foi uma delas. Antes de completar um ano ele foi diagnosticado com APLV, alergia à proteína do leite de vaca, uma condição que até ser determinada lhe causou fortes dores, dermatites e um sem-fim de incômodos relacionados à alimentação. Perto dos dois anos, quando ele passou a ter mais liberdade de escolha, pois aos poucos a alergia foi refluindo em janelas de imunidade que aconteciam aqui e ali, passei a cozinhar mais para servi-lo. Então eu dei um salto na cozinha.
As limitações foram absorvidas pela prática, melhorei o que sabia da cozinha do dia a dia (o feijão-arroz-salada-carne) e isso melhorou o que eu sabia de outras cozinhas, principalmente a italiana e a cozinha quente japonesa, que passei também a adaptar às recomendações médicas para o pequeno. Errei muito até chegar no que considerava ideal, refiz muitos pratos por achar que se não estava bom para mim não deveria estar para o meu filho, mesmo que ele fosse uma criança e tivesse mais apetite do que critério.
A partir dos seus dois, três anos de idade, ainda sob a alergia, mas sabendo como driblar os contra indicativos, ele se tornou a minha companhia mais constante em restaurantes da cidade e, incluído no que eu chamo de “A Busca”, aprendeu a comer de tudo, do prato mais refinado ao espetinho de beira de calçada.
Quando o avô era vivo, eles batiam ponto no espetinho no Largo de Santa Cecília, no centro de São Paulo. Hoje frequentamos o da Rosa, no mesmo bairro, para manter a tradição. Um dos meus orgulhos bestas de pai é levá-lo a algum restaurante na Liberdade quando recebo visitas e deixar que ele explique o cardápio. Há alguns meses, para comemorar seu aniversário de dez anos, fomos a Buenos Aires bater perna e comer o quanto fosse possível. Voltamos com a sensação de missão cumprida e temos planos ambiciosos para destinos futuros.
Em 2019, nasceu a minha filha caçula. Como o irmão, ela tinha um apetite voraz, mas marcado pela seletividade, que é um traço do seu autismo. O desafio para alimentar, que vem do latim alere, que pode se referir a fazer crescer algo, sustentar, manter ou mesmo criar, chegou novamente cercado de restrições, outros desafios. Se o prazer de alimentar o filho mais velho veio pelo caminho até do excesso, porque nada lhe é estranho ao paladar, a graça de alimentar a pequena vem de satisfazer o seu gosto, não o meu, de encontrar contentamento em cada coisinha ou outra que ela consegue comer fora de sua dieta rígida.
Fui um filho bem servido, pela minha mãe, pelas minhas tias e avós, pelo meu pai em seus restaurantes, uma honra cujo valor eu só entendi muito depois. Além de preparar a carne de sol em seus estabelecimentos, ele fazia questão de servir ao público, tinha um olho afiado para falhas de padrão, ensinava os demais pelo exemplo. Alguns ainda hoje tem seus próprios estabelecimentos alimentícios. Desfrutei de cortes muito precisos de carnes muito saborosas por anos e anos.
Quando ele chegou para morar em São Paulo, meu filho mais velho tinha por volta dos três anos de idade. A afetuosidade entre os dois era algo inexplicável e passava também por comida. Pelo espetinho, pelos PFs, padarias e lanchonetes de Santa Cecília, da Vila Mariana, ranqueados ao longo dos últimos cinco anos que puderam conviver. Foi observando meu pai que aprendi a ser pai, vendo o modo como ele servia algo ao neto, depois à neta, tendo a comida como centro incontornável das relações. As últimas palavras que ele trocou com a minha mãe antes de entrar em coma definitivo foi “você tem comido bem?”.
No sertão onde cresci, algo comum no interior Brasil, a comida serve para marcar muita coisa, ditados e dizeres populares (“tá comendo pelas beiras, como quem come mingau quente”, “comida no bucho, pé no mundo”, “farinha pouca, meu pirão primeiro”), xingamentos (“farinha do mesmo saco”, “não vale um prato de cuscuz”) e chistes (“não vou nem por cem reais e uma cocada”, “a conversa ainda não chegou à cozinha”), mas eu gostava mesmo era de algo que meu avô materno repetia e só muitos anos depois eu descobri se tratar de um versículo bíblico. Ele falava ‘ao faminto todo amargo é doce’, frase que no livro de Provérbios (27:7) sucede “a alma farta pisa o favo de mel” — um daquelas exortações bíblicas num clima “enquanto você deixa comida no prato há milhões de crianças famintas da África”, comum aos ouvidos de quem cresceu nos anos 1980-1990 como eu.
A psicologia infantil evoluiu: não precisamos recorrer ao terror alimentar para dar uns toques básicos aos filhos, assim penso eu. Por caminhos diferentes eu e meu pai tentamos deixar marcado para os dois que comida é um prazer e não um distintivo social (uma visão cafona, coitada), que respeitar quem nos serve é uma medida de caráter, que grandes memórias em torno de comida quase nunca estão ligadas a refeições sofisticadas e há que se ter gratidão por poder escolher o que comemos, num país de famintos.