Das tripas ao coração - Parte III
Um roteiro sentimental-gastronômico de São Paulo, uma cidade que te pega pelo estômago
Oi, tudo bem?
Nesta semana São Paulo completa 470 anos. Eu vivo aqui há 16 e desde que cheguei entendi que a cidade pode te agredir tanto quanto mimosear. De certos pontos de vista São Paulo nunca foi tão hostil, mas do ponto vista da gastronomia ela nunca foi tão pujante.
Mapear a cidade pelas minhas comidas prediletas é uma forma de amenizá-la. Abaixo eu compartilho um roteiro pequeno e afetivo de lugares que me fazem gostar um pouco mais de viver aqui. Espero que seja de bom proveito para vocês também.
Até a próxima semana.
Das tripas ao coração - Parte III
Mapear os lugares onde vivo ou vivi pelo estômago foi a herança mais prazerosa deixada pelo meu pai. Com ele, aprendi que saber do que eu gosto de comer é tão importante quanto saber onde posso encontrar o que eu gosto de comer ou, um passo adiante, saber fazê-lo.
Meu pai, por exemplo, era um mestre da carne de sol, algo que ele aprendeu sozinho, impulsionado pelo constante aborrecimento com os marchantes que salgavam a carne em excesso. Esse ofício se tornou seu sustento na maior parte da vida.
Deixei a casa dos meus pais aos 14 anos e a busca incessante à serviço da própria fome foi um ativo importante na minha vida de emigrante, me levou a lugares que eu não iria de outro modo e a conhecer pessoas incríveis que eu jamais teria a chance. Ajudou, sobretudo, a descobrir e a me fazer gostar de São Paulo, onde vivo há 16 anos.
Para um debutante assustado numa cidade hostil, o esquema dos “bar & lanches” foi um porto seguro: virado na segunda, feijoada na quarta, peixe na sexta, eram as poucas certezas que eu tinha do futuro à época.
Aos poucos, puxado pelos amigos, comecei a expandir o raio de procuras. A primeira grande medida de contentamento foi conhecer o Mocotó, na Vila Medeiros, zona norte de SP. Passei a me sentir tão em casa que até aniversário comemorava no restaurante. Nos dias que antecediam a ida, o sarapatel e o joelho de porco dominavam meus pensamentos.
Eu era atraído pelo que ainda considero um resumo muito acurado do cardápio dos secos e molhados do sertão, das estalagens, dos barracos de feiras livres. Os cozidos com que me farto no Mocotó têm uma ponte direta com os que eu dividia com meu pai nos mercados do Pajeú, do Seridó, regiões da caatinga. A isso a casa adicionou técnica e ingredientes de alta qualidade, é um marco, desde então um lugar onde matar saudades.
Claro que para cada Mocotó que eu descobri nos primeiros anos na cidade, caí em dez ciladas, algumas que me ferraram o bolso a ponto de passar semanas sem pisar num restaurante. É um ódio muito particular o de investir dinheiro, ainda mais se você tem pouco, e expectativa numa comida que depois se mostra horrível em todos os aspectos. Pode ser uma lagosta caríssima, um pudim de padaria ou uma maçã que você morde e faz “floft” e não “crec”.
Muitos ‘clássicos’ da cidade se mostraram roubadas, algumas eu só percebi com os anos, à medida que adquiri mais referências. Uns resistem ao tempo em sua ruindade e não raro abro o TikTok e dou de cara com um elo perdido entre o homem e os símios devorando o sanduíche de mortadela do Mercadão, o bauru do Ponto Chic… A Marie Declercq descreveu e analisou o fenômeno como ninguém em sua newsletter Não prometo (absolutamente) nada.
Ter bons guias ajudou a cortar muito caminho. Podiam ser amigos também imigrantes já familiarizados com a cidade ou gente que eu lia no jornal ou em blogs, como os de Nina Horta, Carlos Dória, Luiz Horta, Josimar Melo, Marisa Ono e o inesquecível Alhos e Passas. Mais do que lugares a visitar, eles me estimulavam também a procurar determinadas comidas — e isso abria um leque de possibilidades e pontos luminosos na cidade.
Em 2013, o meu diletantismo tomou forma profissional quando passei a escrever a respeito de comida na imprensa, a convite de um grande amigo, Ricardo Lombardi. A princípio hesitei, achava que me faltava estofo; ele me convenceu de que a busca incessante a que eu me impunha já era parte disso e que, uma vez inserido no meio, eu teria mais ferramentas para ampliar e entender o repertório gastronômico. Ele tinha razão.
Em pouco mais de dois anos, mundos inteiros se abriram para mim: visitei oito países, experimentei centenas de rótulos e de pratos, de dezenas de gastronomias distintas, conheci pessoas incríveis em todos os pontos da cadeia, do chão da terra ao prato na mesa, e só em São Paulo visitei mais de 120 restaurantes. Tanto acesso a tanta informação me tornou também um cozinheiro melhor, sobretudo para os meus filhos.
Tudo isso ajudou a refinar o mapa gastronômico mental da cidade que eu tinha começado a traçar em 2008, a essa altura já completamente tomado por paixões — como as pelas cozinhas japonesa, árabe e italiana —, ocupado com uma bibliografia que até hoje me consome tempo e curiosidade. Todo um alicerce para cumprir melhor as vontades do próprio estômago, não importa a distância.
Inúmeras vezes tive que dar meus pulos para conseguir ir ao Mocotó durante a semana comer sarapatel; até hoje sonho com a paçoca de pato de sol com ovo poché e a panacota de umbu que o chef Rodrigo Oliveira servia no Esquina Mocotó. Ou ir até o Bahia, próximo ao estádio da Portuguesa, comer galinha caipira.
Mais próximo, o Bar do Biu nunca falhou em sua feijoada diária, assim como o Vaquejada, em seu baião turbinado e farto, com torresmo crocante, cerveja gelada e simpatia da casa. Essa simpatia é um ativo que só deixa ainda melhor o Tabuleiro do Acarajé, outro refúgio de comida nordestina de alta qualidade: o acarajé, o cuscuz, as beberagens e as cocadas são as coisas de deixar a vida melhor
Lamento que até hoje nenhuma buchada que comi em São Paulo chegou sequer aos pés de buchadas que posso comer quando estou no sertão. Contudo, quando a saudade é mais forte do que a crítica, vou ao Luisão e minto para mim mesmo que estou esperando Lirinha (José Paes de Lira) no mercado de Arcoverde para comermos uma buchada fresquinha com farinha — isso melhora o sabor. Sinto falta de toda a sorte de cozidos de miúdos e caças a que tinha acesso quando vivia no Nordeste — tejus, tatus, mocós, paneladas, sarapatéis de cordeiro e porco —, mas sei que é uma cozinha delicada no preparo, em que a confiança e a procedência se estabelecem só com o tempo. Ainda me falta esse laço com São Paulo.
A compreensão de que o melhor da gastronomia de São Paulo estava na força da cozinha étnica, de imigrantes como eu, que fizeram da comida uma tábua de salvação, tornou a busca ainda mais instigante. Além das gastronomias estabelecidas, a cidade continua se abrindo a novos impactos que se tornam visíveis só com o tempo, como a chegada dos sírios desde 2014, dos haitianos no Glicério após 2012, o fluxo perene de bolivianos. Cada onda de imigração vem acompanhada do fortalecimento de suas respectivas cozinhas.
Entre tantas, me apeguei à cozinha japonesa como a nenhuma outra. Nos últimos dez anos, vi florescer um auge da gastronomia nipônica em São Paulo, que acompanhei tentando evoluir, conhecer mais, me arriscar mais e nunca fui tão bem recompensado. Entre as primeiras idas à Liberdade e uma compreensão mínima do washoku, a filosofia alimentar japonesa, capinei em muito temaki atolado de cream cheese e hot holl com cara de passado.
Sou grato a todos os rodízios de procedência duvidosa a que fui, porque sem eles como porta de entrada não haveria a busca, as descobertas que se seguiram com os anos e me fizeram visitar o Nirvana, como a primeira vez em que comi shimazushi, sushi de olhete maturado, feito por Kaori Mambo, do Quito Quito.
Aprendi com a frequência, e lendo Marisa Ono e Mari Hirata, que é possível dividir a oferta de comida japonesa em São Paulo por diversas categorias, de pratos, processos, regiões, e assim explorar muitos veios de uma mesma cultura. Se tenho fome de fritura, me ponho a escolher mentalmente entre o karaage ou o wakadori do Matsu, o tempurá de camarão do Sushiguen ou o de legumes do Tempurá Ten. Meu filho já adianta a fala sempre que dividimos tonkatsu no Issa, “como é pai? Ninguém frita como os japoneses…”. Pois é.
Pode-se dizer o mesmo do manejo da brasa, vide o Kaburá, um templo aberto há quarenta anos, onde é servido um dos banquetes dessa cidade: anchovas gordas assadas só no sal — tão simples e tão arrebatador. O trato dos miúdos (fígado, pele de frango, moela, língua) não fica atrás e a cozinha pode se mostrar delicadíssima na montagem e no sabor de um aguedashi dofu. Flan de matchá e chá encerram bem. É um lugar onde costumo chegar cedo, ouvir mais do que falar e de onde nunca saí menos do que feliz.
Nos últimos dez anos, houve uma explosão de casas de lamen na cidade. Elas têm receitas de variadas regiões e orientações, mais tradicionais ou modernas, como o Shin-do, que serve um bom lamen de tucupi, de quem já provei um de tomate inesquecível, uma bomba de umami.
Gosto de caminhar na Avenida Paulista e chegar cedo ao balcão do Barikote, tomar o lamen de missô da casa; às vezes, é a única recompensa de um dia ruim. Se estiver disposto a caminhar um pouco mais, posso ir até o Jojo, responsável por subir muito o sarrafo da cozinha japonesa na cidade, em busca de um shio lamen, o de sal, delicado e complexo.
Antes de todos eles, no entanto, havia o Aska, onde levei o meu filho para provar o seu primeiro lamen, como eu havia feito dois anos depois de chegar a São Paulo. E ainda estão lá portos seguros como os teyshokus do Mugui, os PFs sino-brasileiros do Udon Nakamura — que maravilha poder comer um contrafilé no missô com feijão carioquinha, arroz e fritas.
A maneira ritualística como um sushi shokunin (ou sushiman, no populacho) trabalha se tornou uma fonte de admiração e prazer. Sentar-se no balcão para observar Nobu-san no Pub Keito, os mestres Lida-san no Kenzo ou Yoshida-san no Hamatyo, é uma parte importante do que compõe o sabor do que é servido. A frequência e o interesse discreto construíram uma relação de confiança e gentileza, que aqui e ali se expressa em mimos, um peixe mais gordo, uma centolla parruda. Para rápidas expedições, me agradam os almoços no discreto Kan Suke, no novo Sushiguen ou no convidativo Vaz, falante e vivaz como sói a um brasileiro.
Admiro demais o mínimo fundamental a que cada um deles chegou: as estações de trabalho são curtas e limpíssimas, fala-se geralmente aos sussurros, em cada movimento há critério e significado. Dar a esses chefs a nossa confiança é o primeiro passo na construção de uma relação que pode durar anos. Já entrei na fase de voltar sempre aos mesmos lugares, no mesmo horário, e pedir os mesmos itens.
Confiança também é importante no trato com os levantinos, os “árabes”, que na verdade são turcos, sírios, libaneses e armênios que ajudaram a construir São Paulo. Quando no Tenda do Nilo você ouvir que “habib, quibe não se come com limão” ou “você tem de abrir o pão para colocar a coalhada seca numa folha por ve”, apenas aceite e se farte: as irmãs Xmune e Olinda, que servem o melhor fateh desta cidade, sabem do que estão falando.
Um pouco mais antiga e cheia de camaradagem é a relação que construí com Ahmad, o proprietário do Syria, que chegou a São Paulo há quase 15 anos fugindo da guerra, de quem há dez anos sou cliente, quando ele inaugurou uma pequena casa de shawarma na Avenida Rio Branco, no centro de SP.
Ahmad deixou a cidade em que nasceu na carroceria de uma caminhonete enquanto via bombas sendo despejadas, sem saber se veria novamente a família, se conseguiria sobreviver e deixar o país. Há algum tempo ele tem retornado todos os anos para reencontrá-los: fecha o restaurante por um mês e da Síria manda vídeos de amigos dançando coreografias típicas em casamentos e festas, e comendo com alegria. Durante esse mês eu não como shawarma: espero a sua volta e com antecedência encomendo um manjar que só provando para entender: kafta crua de cordeiro. Bastam azeite e pão para acompanhar.
Cordeiro e cuscuz são insumos centrais na cozinha levantina/magrebina – tanto quanto na sertaneja, embora sejam distintas nos temperos e em alguns preparos. Como moro mais distante, parece uma viagem ir até a Casa Garabed, na Zona Norte, para comer cordeiro assado à moda armênia, como fazia com o meu pai no passado nos mercados do sertão. Mais próxima, a Casa Effendi me satisfaz com harisseh, o cozido de trigo grosso com carne desfiada, e as esfirras mais saborosas.
Quando penso no quão longe a paixão por uma gastronomia pode levar alguém penso no meu amigo chef Fred Caffarena, que subiu muito o nível da comida dita “árabe” em São Paulo. Italiano de origem, partiu numa busca riquíssima por conhecimento no interior da Turquia, da Síria e do Líbano. Se entranhou tanto na cultura que meu cérebro já o processa como um turco vivendo no Brasil. Faz um hommus dos deuses numa cidade em que a concorrência é bem alta nesse sentido — e nos últimos anos viu chegar “concorrentes” judaicos excelentes como o Jaffa, Shuk e a volta de Andrea Kaufmann à restauração.
Nas primeiras vindas a SP, a gastronomia italiana foi a que mais me impressionou, especialmente pelo aspecto ‘típico’ das cantinas, inexistentes no mundo onde eu vivia. Esbaldei-me no Bixiga inúmeras vezes com amigos, dividindo entradas infinitas e pratos enormes. Se com o tempo eu viria a entender que eram um tanto equivocadas no preparo e nos ingredientes, essas cantinas serviram para me abrir um mundo até então pouco conhecido e adquirir bastante repertório.
O refinamento desse conhecimento adquirido se deu mais em casa, me aventurando no fogão, do que frequentando restaurantes. Foram muitos erros e acertos executando receitas de Fundamentos da Cozinha Italiana Clássica, da Marcella Hazan, que até hoje recomendo a amigos que desejam se aprofundar no tema. Inclusive com um esquema simples: tente uma receita por semana. Ao fim de um ano, você terá 52 pratos e histórias para contar. Nessa jornada, algumas podem se tornar suas prediletas da vida.
Considero o cenário hoje muito mais convidativo do que há 15 anos. A gastronomia italiana tomou corpo com mais técnica, com produtos de altíssima qualidade e arrisco dizer que, em certos lugares de SP, pode-se comer tão bem quanto em excelentes restaurantes da Itália. O custo disso foi terem se tornado menos acessíveis do que ainda são as cantinas mais tradicionais – tudo tem seu preço, inclusive comer bem. Vide o Pasta Shihoma, o Pichi, a Fame, o Temperani, alguns tocados por chefs italianos, outros por combinações curiosas: o Shihoma, por exemplo, é tocado por um chef japonês, um coreano e uma brasileira.
Enfim, são dezenas os países que têm cozinha representada em São Paulo, seja em restaurantes enormes ou portinholas de rua, uma fonte inesgotável de prazer. Chineses, coreanos, italianos e andinos encontram seu porto seguro em cada prato servido nesses lugares-túneis-do-tempo em que é possível se transportar pelo sabor para um outro espaço, outra cultura e outros códigos. Além dos que mencionei acima, separei mais de cem lugares onde comer e o que pedir: você pode encontrá-los aqui.
São Paulo pode ser uma cidade cada vez mais feia, hostil, barulhenta e suja, mas ela te pega pelo estômago, te compra com comida. Nela às vezes é mais fácil encontrar um prato tailandês de qualidade do que um feijão que não seja aguado e quebradiço. Ela te recompensa, mas pede dedicação e interesse. Aos poucos, você vai fincando uma bandeirola mental em cada um dos lugares onde sabe que vai comer sempre bem — e é nisso que a cidade vai se tornando para você aos poucos.
Aquela anchova pqp