Das tripas ao coração - Parte II
Com meu pai eu aprendi que podemos submeter uma parte considerável de nossas vidas aos desejos do nosso estômago
Oi, tudo bem?
Quando descobri, já na vida adulta, que o Guia Michelin nasceu para orientar os viajantes a encontrar boas refeições, eu pensei no meu pai.
Nos anos em que trabalhou como representante comercial, nos poucos intervalos entre um restaurante e outro, meu pai percorreu muitos milhares de quilômetros no sertão e montou para si um guia das melhores mesas da caatinga. Isso se somou à sua busca, a que ele já se dedicava no cotidiano.
Abaixo eu conto algumas dessas histórias e de como elas foram fundamentais na formação do meu paladar. Até a próxima semana!
Das tripas ao coração - Parte II
Eu devia ter sete, oito anos; lembro de segurar as mãos do meu pai à frente e do meu irmão mais novo logo atrás, abrindo caminho entre centenas de pessoas espremidas entre bancas de feira. Estávamos numa cidade pequena do sertão paraibano, de passagem até a fazenda dos meus avós, no sertão potiguar.
Era uma feira de mangaio, barulhenta, com pessoas gritando ofertas, cantadores criando versos à soldo, galinhas, cabritos e reses. Estávamos em busca de um produto raro, que podia se tornar uma iguaria e cujo consumo era ilegal.
Meu pai era um homem de fala muito mansa, gentil e gregário. Tinha amigos em muitas cidades do sertão nordestino, por onde viajou como representante comercial numa fase da vida, além de clientes que cultivou durante os mais de trinta anos em que teve ou trabalhou em restaurantes.
Nos períodos afastados do balcão, onde quase sempre trabalhava em dupla com a minha mãe, que cuidava da cozinha, meu pai viajava durante semanas cruzando a caatinga vendendo ou comprando de acordo com o negócio da vez. Nas férias escolares, eu e meu irmão nos revezávamos o acompanhando.
A comida na estrada costuma ser ruim e cara. No sertão ela pode estar distante e ser escassa, tínhamos de viajar horas e horas para encontrar algo minimamente razoável, então meu pai repetia à mesa o meu avô materno contemporizando que “ao faminto todo amargo é doce”. Com o tempo, ouvindo dicas de amigos, clientes, colegas de estrada, meu pai aprendeu a escapar das ciladas que a fome pode meter um ser humano e a comer melhor durante as viagens.
Comer era o seu grande prazer mundano e sua maior expertise, porque era bom de garfo e pedia de si um padrão de qualidade muito alto quando estava à frente de um restaurante, mesmo que de comida regional, de receitas caseiras.
Ao criar um mapa de onde se podia comer bem no interior do RN, da Paraíba, do Ceará e do Pernambuco, as viagens se tornaram menos enfadonhas. Como quem sai aos seus não degenera e tendo passado parte da infância e da adolescência entre balcões, fogões e mesas, o prazer de comer se tornou um atrativo nessas peregrinações.
Se íamos ao Ceará, eu sabia que comeríamos ensopado de capote, ou galinha de Angola (Guiné, no RN) em algum lugar próximo de Aracati; que em Russas ou em São Francisco do Canindé havia bons carneiros guisados, servidos com feijão verde e batata doce, tão bons quanto os caldos de mocotó e costela de boi do mercado do Crato, servidos a partir das 4h30.
Quando entrávamos em Pernambuco, íamos no faro de uma buchada servida em Arcoverde. Os mercados do Pajeú guardavam cozinhas incríveis, tocadas quase sempre por famílias, que serviam sarapatel, buchada, panelada, fritada, as chamadas miunças, as galinhas, os marrecos, as codornas, os bodes e carneiros, guisados ou maturados, de sol.
Como costumava dizer Mário de Andrade, que viajou pelo interior do Nordeste na companhia de Câmara Cascudo, são comidas “que nos devoram” e não o contrário. Pesadas, complexas, colagenosas, às vezes tornavam a viagem pós-almoço mais lenta: a velocidade ia num crescente da fome, então quando o sol estava para se pôr era como se estivéssemos correndo em sua direção, aquela vermelhidão no horizonte sertanejo, com nosso pensamento no jantar próximo.
Meu pai adorava sopas. No RN, ele sabia que em Assú, Ipanguaçu e Apodi podia encontrar boas sopas de costela, cujo caldo virava pirão com acréscimo de farinha para encerrar a refeição, quase sempre acompanhada de tubaína de caju ou sucos de acerola, pitanga, mangaba – este o meu predileto. Farinha era um item indispensável na dieta do meu pai: as melhores, ele dizia, estavam no brejo paraibano.
O café da manhã era importante, como eram importantes as tapiocas de uma vendinha que frequentei com ele em muitas madrugadas de Jardim de Piranhas-RN, a caminho do sertão paraibano. Mestre de carne de sol, ele também aprendeu a reconhecer quem respeitava o ofício como ele e onde se servia uma boa turina, ou lombo paulista, maturado, na divisa onde convergem Ceará, RN e Paraíba. Comia-se com macaxeira cozida na manteiga de garrafa, cuscuz e feijão de corda.
A feira em que ele, meu irmão e eu abríamos caminho acima, era a de Brejo do Cruz, na caatinga paraibana, cidade onde nasceu Zé Ramalho — a pedra de turmalina e o terreiro da usina também eram parte da minha paisagem, como em Avohai. Meu pai tinha recebido a dica de um velho companheiro, comerciante da cidade, que na feira do sábado alguém traria arribaçãs para vender.
Arribaçãs, ou aves de arribação, são pássaros da espécie Zenaida auriculata. Elas costumam chegar no comecinho do inverno sertanejo, onde cruzam o céu em revoadas e “arribadas” das beiras de açudes e córregos em grupos de centenas, e partem pouco depois do fim da estação das chuvas. A caça e o consumo são considerados crime ambiental, o que já encalacrou com a justiça centenas de sertanejos de hábitos alimentares renitentes, digamos assim, como meu pai.
Essas aves medem até 15cm, tem carne magra e rija, mas que pode se tornar saborosa se bem guisada ou cozida lentamente em panelas de barro. E nisso a minha avó, mãe do meu pai, era imbatível. De seu fogão a lenha e panelas de barro saiam cozidos, guisados e ensopados saborosíssimos. Naquele dia, Dona Maria Ricardina já tinha sido avisada que os insumos do almoço seriam levados pelo meu pai, que chegaria no máximo às 10h na Fazenda Serra Preta.
Por ser ilegal, a venda obviamente não era anunciada aos gritos na feira; quem tinha, trazia a mercadoria disfarçada, informando a poucos conhecidos, sempre aos sussurros. Quando chegamos ao Brejo, cedinho de manhã, meu pai se dirigiu para as imediações da feira livre, cumprimentou amigos e em dois sussurros sabia onde encontrar as arribaçãs.
Tínhamos os sentidos aguçados pelos cheiros, as cantorias, a cor das verduras e hortaliças, o perfume dos temperos. Depois de alguns minutos caminhando como se num labirinto chegamos à banca. Na parte de cima os legumes, embaixo, dentro de um tambor de leite redondo de aço com a tampa de rosca, as aves proibidas. Em dois ou três sinais discretos que já não recordo, meu pai informava ao vendedor que sabia o que ele tinha e que vinha por contato seguro.
As arribaçãs eram caçadas com espingarda de chumbinho, tratadas, salgadas e amarradas em pares, que iam se acumulando desde o fundo do tambor. Alguém as recolhia abaixado sob a banca, embalado em papel kraft e depois enrolado numa sacola, de modo que o pacote não se distinguia de um frango caipira que podia ser comprado noutra banca a poucos metros.
A quilometragem até a fazenda da minha avó era vencida com uma fome que só aumentava. A trégua se dava dali a algumas horas quando os pratos chegavam à mesa, num festim de cheiros, gostos, silêncio e ossos, que iam sendo arrancados e colocados num prato no centro da mesa.
Comíamos todos calados, como uma letra de Belchior, aqui e ali servidos com mais farofa, mais graxa, o caldo grosso do ensopado feito pela minha avó, que raras vezes na vida permitiu que uma visita deixasse sua casa sem comer “qualquer coisinha” antes. Às vezes, uma “coisinha” podia significar uma galinha caipira inteira.
Herdei do meu pai o gosto por comida e o paladar curioso, o que me levou a inúmeras buscas: a lugares dos quais soube aos sussurros, a vielas, becos e mercados públicos; alguns lugares sofisticadíssimos, outros cuja riqueza estava inteiramente na comida que servia.
Com o tempo passei a mapear os lugares onde vivi de acordo com onde e o que posso comer, me tornei, como meu pai no volante da caminhonete, o guia de amigos, dos meus filhos, do que fazer e aonde ir para encontrar a melhor refeição do que você desejar. No meu caso, sem incorrer em contravenções e crimes ambientais, mas também guiado pelo estômago.
coisa fina! Adorando os textos.
Que delícia esse texto! Faz a gente se sentir viajando com vocês.